Children of the Nameless - Uma novela Magic: the Gathering | Magic

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Publicado em 18/12/2018
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Brandon Sanderson é mais conhecido pelo universo Cosmere, onde estão situadas as histórias de Mistborn The Stormlight Archive, e por seu trabalho em finalizar a saga A Roda do Tempo. Porém, quem acompanha com mais afinco a trajetória do escritor, sabe que ele é um apaixonado jogador do card game Magic: the Gathering. Não foi à toa que a Wizards of the Coast propôs que ele escrevesse uma novela situada no universo do jogo, o que ele prontamente aceitou.

Children of the Nameless (Filhos do Sem Nome) é o título deste primeiro contato de Sanderson com a história por trás do multiverso repleto de magos, criaturas, terras e artefatos mágicos do mais antigo jogo de cartas colecionáveis.

O Multiverso

O multiverso de Magic: the Gathering é composto por diversos planos (algo como mundos) separados pelo Éter. Esses planos podem ser naturais ou artificiais. Alguns raros indivíduos, quando expostos a situações extremas, podem despertar em si uma fagulha. Essa fagulha é o desencadear do processo que os fazem ascender à condição de planeswalkers (planinautas).

Os planeswalkers possuem habilidades mágicas poderosíssimas, sendo capazes de transitar entre os diversos planos do multiverso. Em Children of the Nameless, Sanderson introduz Davriel Cane, um planeswalker concebido pelo próprio autor em conjunto com a Wizards. A história se passa no plano de Innistrad, uma terra sombria, cheia de lobisomens, vampiros, demônios e fantasmas.

A História

Sanderson concedeu uma entrevista ao site io9, falando sobre a protagonista Tacenda, que possui poderes mágicos, mas tem que enfrentar a sua própria fraqueza para fazer bom uso do sem dom. É através dela que a maior parte da história é experimentada.

Conhecido pelos seus sistemas de magia bem elaborados. Como era de se esperar, achou bastante interessante desenvolver a forma como a magia é conjurada em Magic: the Gathering:

Estou sempre ansioso em pôr as minhas mãos em um novo sistema de magia, vendo como posso dobrá-lo, brincar com ele e abordá-lo a partir de direções inesperadas.

Em uma outra entrevista, concedida à Wizards, Sanderson revelou que já possuía a história na cabeça há anos. Sentiu-se muito satisfeito em escrevê-la, pois a empresa lhe concedeu total liberdade para criá-la. Ele afirmou que a disponibilidade de numerosas ilustrações e da história pré-existente para o plano o auxiliou no processo. No entanto, teve todo o cuidado de fazer as coisas ao seu modo. O escritor concluiu a entrevista dizendo que gostaria de escrever outras histórias para a franquia.

Sinopse

Desde o dia em que nasceu, Tacenda tem sido tanto abençoada quanto amaldiçoada. Quando o seu feitiço de proteção falha durante a noite e a sua aldeia em Kessig é atacada, ela busca vingança contra quem acredita ser o responsável: o pactuante com demônios Lorde da Mansão.

e-book completo foi disponibilizado gratuitamente (em inglês) pela Wizards of the Coast. Você poderá baixá-lo em formato EPUB clicando aqui ou em PDF neste link.

Prólogo

Haviam dois tipos de escuridão e Tacenda temia o segundo muito mais do que o primeiro.

A primeira escuridão era uma escuridão comum. A escuridão das sombras, onde a luz esforçava-se para alcançar. A escuridão de uma porta de armário, rachada, ou do antigo galpão perto da floresta. Essa primeira escuridão era a escuridão do entardecer, que infiltrava-se nas casas quando a noite chegava, como um visitante indesejável que você não possui escolha senão deixá-lo entrar.

A primeira escuridão tinha os seus perigos, especialmente nesta terra onde as sombras respiravam e coisas sombrias uivavam à noite. Mas foi essa segunda escuridão — a que vinha sobre Tacenda todas as manhãs — que ela realmente temia. Sua cegueira estava ligada diretamente ao nascer do sol; ao primeiro raio de luz, sua visão desaparecia. Então, a segunda escuridão se apossava dela: um puro, inescapável negrume. Apesar de todas as garantias tanto dos seus pais quanto dos sacerdotes, ela sabia que algo terrível a observava daquela escuridão.

Sua irmã gêmea, Willia, a entendia. A maldição de Willia era o inverso da de Tacenda — Willia enxergava durante o dia, mas era capturada pela segunda escuridão todas as noites. Nunca houve um momento no qual ambas pudessem enxergar ao mesmo tempo. Desta forma, ainda que gêmeas, as garotas nunca puderam olhar nos olhos uma da outra.

Enquanto crescia, Tacenda tentou banir o medo dessa segunda escuridão aprendendo a tocar música. Ela disse a si mesma que, pelo menos, ainda podia ouvir. De fato, sendo cega, ela sentia que conseguia ouvir melhor a música natural da terra. O triturar de seixos sob os passos. Os vibrantes tremores das risadas quando uma criança passava por seu assento no centro da cidade. Às vezes, Tacenda até sentia que podia ouvir o alongamento de árvores antigas enquanto cresciam — um som como o torcer de uma corda — acompanhando pelo gentil suspirar de suas folhas estabelecidas.

Ela desejava poder ver o sol, ao menos uma vez. Uma bola de fogo gigante, flamejante e ardente no céu, mais brilhante do que a lua? Ela podia sentir o seu calor intenso em sua pele, por isso sabia que ele era real, mas como será que é para os outros viverem as suas vidas, vendo aquela incrível fogueira no céu caindo sobre eles?

O povo da aldeia soube sobre as maldições inversas das meninas e as consideraram marcadas. Foi o toque do Pântano sobre elas, sussurravam as pessoas. Algo bom: significa que as gêmeas foram abençoadas.

Tacenda tinha dificuldades em sentir que isso era uma bênção até o primeiro dia em que ela encontrou a sua primeira verdadeira canção. Quando ainda era criança, as pessoas da aldeia compraram para ela tambores de um mercador viajante, de forma que ela pudesse cantar para eles enquanto trabalhavam nos campos cheios de pó. Eles diziam que a escuridão entre as árvores parecia recuar quando ela cantava e afirmavam que o sol brilhava mais forte. Em um desses dias, Tacenda descobriu um poder dentro de si — e começou a cantar uma linda e reconfortante canção de alegria. De alguma forma, ela sabia que ela havia surgido do Pântano. Um dom concedido juntamente com a sua maldição de cegueira.

Willia sussurrou que ela também sentia um poder dentro de si. Uma estranha e incrível força. Quando ela lutava com a espada — embora tivesse apenas doze anos — se igualava até a Barl, o ferreiro.

Willia sempre foi a feroz das duas. Pelo menos durante o dia. À noite, quando a segunda escuridão se apossava dela, ela se estremecia com um medo que Tacenda conhecia intimamente. Durante aquelas longas noites, Tacenda cantava para a sua irmã, uma menina atemorizada — contra toda a razão — de que, desta vez, a luz não retornaria para ela.

Foi em uma noite como essas, logo após o décimo terceiro aniversário das duas, que Tacenda descobriu uma outra canção. Surgiu para ela como uma coisa da floresta arranhando a porta, uivante e delirante. Feras às vezes vinham da floresta à noite, invadindo casas e raptando os moradores. Esse era o preço de viver nos Acessos; a terra cobrava um imposto sobre o sangue dos indivíduos. Havia pouco a fazer além de barrar a sua porta e rezar ao Pântano ou ao Anjo — dependendo da sua preferência — pela libertação.

Mas, naquela noite — ouvindo a sua irmã em pânico e o choro dos seus pais — Tacenda foi em direção à besta quando esta entrou. Ela ouvira música na porta rachada e estilhaçada, na brisa que sacudia as árvores, em seus próprios batimentos cardíacos que trovejavam em seus ouvidos. Ela abriu sua boca e cantou algo novo. Uma música que fez a fera gritar de dor, batendo em retirada. Uma canção de desafio, uma canção de proteção.

Na noite seguinte, a aldeia pediu-lhe para cantar a sua música na escuridão. A aldeia, outrora a menor das três nos Acessos, começou a inchar à medida que as pessoas escutaram sobre as suas gêmeas protetoras: a feroz guerreira que treinava durante o dia e a tranquila cantora que acalmava a noite.

Por dois anos, a aldeia conhecera uma paz excepcional. Ninguém fora raptado durante a noite. Nenhuma fera uivara para a lua. O Pântano enviou guardiões para proteger seu povo. Ninguém notou muito quando um novo lorde, que referia a si mesmo como o Homem da Mansão, chegou para tomar o lugar do antigo morador. As disputas entre os lordes não eram algo para as pessoas comuns questionarem. De fato, esse novo Homem da Mansão parecia guardar os seus assuntos para si — uma melhoria em relação ao velho senhor. Assim eles pensaram.

Então, assim que as gêmeas completaram quinze anos, tudo deu errado.

Capítulo 1: Tacenda

Os Sussurradores chegaram pouco antes do anoitecer e a canção de Tacenda não foi o suficiente para detê-los.

Ela gritou o refrão da Canção de Proteção, escorregando suas mãos pelas cordas de sua viola de gamba — um presente de seus pais em seu décimo quarto aniversário.

Seus pais foram mortos dez dias atrás pelas estranhas criaturas que agora atacavam a aldeia. Tacenda havia acabado de se recuperar daquela dor quando eles levaram Willia também. Agora, elas haviam vindo pela aldeia inteira.

Uma vez que o sol ainda não havia se posto, ela não conseguia vê-los, mas podia ouvir suas fracas vozes sobrepostas umas às outras, enquanto fluíam ao redor de seu assento. Elas falavam em tons roucos — suaves, as palavras eram indistinguíveis — como um acompanhamento vocal à sua música.

Ela redobrou seus esforços, depenando a sua viola com dedos crus, sentada em seu lugar habitual no centro da vila, próximo à cisterna borbulhante. A canção deveria ter sido o suficiente. Durante dois anos ela deteu todos os terrores e horrores. Os Sussurradores, no entanto, pareciam indiferentes enquanto fluíam ao redor de Tacenda. Logo, gritos humanos de terror surgiram como um horrendo coro ao redor dela.

Tacenda tentou cantar mais alto, mas a sua voz estava ficando rouca. Ela tossiu em sua expiração seguinte. Engasgou, tremendo, lutando para—

Algo frio roçou nela. A dor dos seus dedos tornou-se dormente e ela arquejou, saltando para trás, apertando a viola contra o peito. Tudo estava negro ao redor dela, mas ela conseguia escutar a coisa por perto, mil sussurros se sobrepondo, como páginas sendo passadas rapidamente, cada um tão silencioso como um suspiro de morte.

Então, ela se afastou, ignorando-a. O resto dos aldeões não tiveram a mesma sorte. Eles haviam se trancado em suas casas — onde agora gritavam, rezavam e imploravam… até que, um por um, começaram a ficar em silêncio.

“Tacenda!” Uma voz gritou por perto. “Tacenda! Socorro!”

“Mirian?” A voz de Tacenda saiu como um áspero coaxar. De que direção veio aquele som? Tacenda girou na escuridão, chutando seu banquinho ruidosamente.

“Tacenda!”

Ali! Tacenda correu cuidadosamente seu pé ao longo do lado da cisterna para sentir suas pedras esculpidas e orientar-se, enfiando-se, então, na escuridão. Ela conhecia essa área muito bem e fazia anos desde a última vez que ela tropeçou ao cruzar a praça da aldeia. Mesmo assim, ela não conseguia evitar aquele pico de medo quando dava um passo à frente. Ali, naquela escuridão que ainda a aterrorizava.

Caminharia ela dessa vez rumo ao vazio para nunca mais retornar? Continuaria ela a tropeçar em uma vasto, desconhecido negrume, alheio a todos os sentimentos e toques naturais?

Em vez disso, ela alcançou a parede de uma casa, exatamente onde ela havia previsto que estaria. Ela tateou com dedos crus, tocando o peitoril da janela, sentindo os vasos de ervas de Mirian em uma fileira, um dos quais, em sua pressa, derrubou acidentalmente. Ele despedaçou-se nos paralelepípedos.

“Mirian!” Tacenda gritou, tateando o seu caminho ao longo do muro. Outros gritos ainda ressoavam na aldeia — algumas pessoas clamando por ajuda, outros gritando em pânico. Juntos, os sons era uma tempestade, mas cada um parecia tão solitário.

“Mirian?” Disse Tacenda. “Por que a sua porta está aberta? Mirian!”

Tacenda tateou seu caminho para dentro da pequena casa e, então, tropeçou em um corpo. Com lágrimas molhando o seu rosto, Tacenda ajoelhou-se, ainda segurando a sua viola em uma mão. Com a outra, sentiu a saia de renda — bordada pelas próprias mãos de Mirian durante as noites quando, às vezes, ela permanecia acordada para fazer companhia a Tacenda. Ela moveu sua mão até o rosto da mulher.

Mirian havia trazido chá para Tacenda há menos de uma hora. E agora… sua pele, de alguma maneira, já estava fria e seu corpo, rígido.

Tacenda deixou cair a sua viola e se afastou, batendo as costas contra a parede e derrubando alguma coisa. O item derrubado quebrou-se ao atingir o chão, um som quase musical.

Do lado de fora, os últimos gritos estavam se rendendo.

“Levem-me! “Tacenda gritou, tateando seu caminho em volta da porta. Ela raspou o braço em um canto afiado, rasgando a sua saia, sangrando o seu antebraço. “Levem-me, como fizeram com a minha família!” Ela tropeçou na praça principal da aldeia novamente e, ao passo em que os gritos e o pânico se dissipavam, ela notou uma voz mais suave. Uma voz de criança.

“Ahren?” Ela gritou. “É você?”

Não. Pântano, ouça a minha prece. Por favor…

“Ahren!” Tacenda seguiu o pequeno grito de pânico para outro prédio. A porta estava trancada, mas isso não parecia deter os Sussurradores. Eles eram algum tipo de espíritos ou geists.

Tacenda tateou seu caminho até à janela, onde ela ouviu uma pequena mão batendo no vidro. “Ahren…” disse Tacenda, repousando a própria palma contra o vidro. Uma frieza passou por ela.

“Tacenda!” gritou o garotinho com a voz abafada. “Por favor! Ela está vindo!”

Ela respirou fundo e tentou, através de seus soluços, forçar uma música. Mas a Canção de Proteção não estava funcionando. Talvez… talvez outra coisa?

“Simples… simples dias de sol quente…” ela começou, experimentando a sua antiga canção. A música alegre que ela cantava para sua irmã e para as pessoas da aldeia quando ainda era criança. “E a luz que acalma não irá fugir…”

As palavras morreram em seus lábios. Como ela poderia cantar a respeito de um sol quente que ela não podia mais ver? Como ela poderia tentar acalmar, trazer alegria, quando as pessoas estavam morrendo ao seu redor?

Aquela música … ela não se lembrava mais daquela música.

O choro de Ahren parou quando um baque abafado soou dentro do prédio. Lá fora, os últimos gritos desapareceram. E a aldeia ficou em silêncio.

Tacenda recuou da janela e, então, ouviu passos atrás dela.

Passos. Os Sussurradores não fazem esse som.

Ela girou em direção aos passos e ouviu o farfalhar de pano de alguém por perto, observando-a.

“Eu posso ouvir você!” Tacenda gritou para a figura oculta. “Homem da Mansão! Eu posso ouvir os seus passos!”

Ela escutou uma respiração. Mesmo os sons dos Sussurradores desapareceram. Mas, quem quer que estivesse ali, observando, permaneceu imóvel.

“Leve-me!” Tacenda gritou para a segunda escuridão. “Leve-me de uma vez!”

Os passos, em vez disso, recuaram. Uma brisa fria e solitária soprou pela aldeia. Tacenda sentu os últimos raios de sol se dissiparem e o ar gelando. Quando a noite caiu, a visão de Tacenda retornou. Ela piscou quando a escuridão recuou até tornar-se meras sombras, o céu ainda levemente quente da recente passagem do sol.  Como as brasas do pavio que se agarram — brevemente — ao pavio depois que o fogo se apaga.

Tacenda deu por si de pé perto da cisterna, seu rosto uma bagunça de lágrimas e cabelos castanhos emaranhados. Sua preciosa viola de gamba no chão, com o acabamento em madeira riscado, na entrada da casa de Mirian.

A aldeia estava silenciosa. Vazia, com a exceção de Tacenda e dos cadáveres.

Capítulo 2: Tacenda

Tacenda passou cerca de meia-hora invadindo casas, procurando em vão por sobreviventes. Mesmo aquelas famílias que tinham fugido para a igreja haviam perecido. Ela confrontou cadáver após cadáver. A luz havia desaparecido de seus olhos e o calor fora roubado de seu sangue.

Seus pais sofreram o mesmo destino, dez dias antes. Eles, juntamente com Willia, estavam a caminho para entregar oferendas ao Pântano. O Homem da Mansão os interceptou e os atacou por razões incompreensíveis. Ele subjugou Willia, que — apesar de sua força incomum — não era páreo para a sua terrível magia.

Willia havia escapado e corrido até o priorado em busca de ajuda. Quando ela retornou com soldados da igreja, havia encontrado apenas dois cadáveres. Seus pais, com os corpos já frios. Ainda naquela noite, os Sussurradores apareceram pela primeira vez — estranhos, retorcidos geists que mataram aqueles que se afastaram das aldeias. Testemunhas juraram que eles trabalhavam sob a direção do Homem da Mansão.

Mesmo assim, Tacenda esperava por uma salvação. Esperava que o Pântano os protegesse. Até que o Homem da Mansão finalmente veio atrás de Willia, matando-a. E agora…

E agora…

Tacenda desabou à beira da porta da família Weamer, com a cabeça nas mãos, iluminada pelo distante luar. Os sacerdotes e WIllia desejavam dar aos seus pais um enterro na igreja, mas Tacenda insistiu que, em vez disso, seus corpos fossem devolvidos ao Pântano. Sacerdotes podiam ensinar sobre anjos o quanto quisessem, mas a maioria dos habitantes dos Acessos sabiam que pertenciam — em última instância — ao Pântano.

Mas… quem poderia devolver todos esses cadáveres ao Pântano? A aldeia inteira?

Subitamente, parecia que todos os olhos dos cadáveres a observavam. Com uma mão dolorida, Tacenda tateou o pingente de sua irmã, que ela usava em volta do pulso. O simples cordão de couro trazia um ícone de ferro do Anjo Sem Nome. Ele e sua viola eram as únicas coisas importantes que restavam em sua vida. Não havia nenhum motivo para permanecer aqui sob aqueles olhos mortos e vigilantes.

Sentindo-se entorpecida, Tacenda pegou sua viola e começou a andar. Ela vagou para fora da cidade, passando pelo campo de terra onde o corpo de Willia foi encontrado. Naquele dia… bem, uma parte de Tacenda tornou-se fria. Talvez por isso, agora que aquilo havia acontecido, ela achava-se cansada demais para derramar lágrimas.

Ela caminhou pela floresta sombria, um lugar onde nenhuma pessoa iria em sã consciência. Vagar através da floresta à noite era pedir por acidentes, um convite para se perder ou expor a si mesmo às presas de alguma fera à espreita. Mas por que isso importaria agora? Sua vida não tinha mais sentido e ela não poderia se perder se não tivesse planos de retornar.

Ainda assim, quando fechou os olhos, ela pôde sentir onde a escuridão era mais pura. Era quase a mesma sensação daquela segunda escuridão que ela sentia. Alguns anos atrás, ela encontrou uma menina cega do condado, de passagem juntamente com mercadores. Willia estava tão animada em poder falar com alguém que pudesse entender a Segunda Escuridão — mas essa garota estava confusa com as suas descrições. Ela não temia a escuridão e não conseguia entender por que elas a temeriam.

Foi então que Tacenda finalmente começou a compreender. A coisa que elas viram quando a maldição se apossou delas era algo mais profundo, estranho. Algo mais que mera cegueira.

Ela seguiu em direção à escuridão, sua saia agarrando no mato, passando por árvores tão antigas que ela certamente teria perdido a conta dos anéis. Em muitas noites, essas árvores tinham sido o único público de Tacenda, e o vento em suas folhas, seu aplauso. O resto da aldeia dormia o sono intermitente e incerto de uma lâmpada com pouco óleo. Se você acordasse com falta de ar, pelo menos teria acordado vivo.

O interminável dossel — perfurado aqui e ali pelo luar de aço — parecia ser o próprio céu. Erguido pelas colunas escuras das árvores, estendendo-se até o infinito, como reflexos de reflexos. Ela andou sem parar durante meia-hora, mas nada veio atrás dela. Talvez os monstros da floresta estivessem simplesmente chocados demais em ver uma garota solitária de quinze anos perambulando à noite.

Em pouco tempo, ela conseguia sentir o cheiro do Pântano: podridão, musgo e coisas estagnadas. Ele não possuía um nome, mas os aldeões todos sabiam que pertenciam a ele. O Pântano era a proteção deles, pois até mesmo as coisas que aterrorizavam na escuridão da floresta — até mesmo pesadelos encarnados — mesmo eles temiam o Pântano.

E, no entanto, ele falhou conosco esta noite.

Tacenda emergiu em uma pequena clareira. Ela conhecia o som do Pântano como conhecia os próprios batimentos cardíacos — um rumor baixo, como o de uma panela fervente, pontuado por estalos ocasionais, reminiscente de um osso quebrando. Ela veio aqui muitas vezes com os pais, trazendo oferendas — mas nunca durante a noite.

Ele era… menor do que ela imaginava. Uma lagoa perfeitamente circular, cheia de água escura. Embora o solo desta região da floresta fosse repleto de charcos e brejos traiçoeiros, esta lagoa específica sempre foi conhecida como “o Pântano” pelo seu povo.

Tacenda aproximou-se até à beirada, lembrando o som suave — não como uma salpicada na água, mas como um suspiro — que os corpos dos seus pais fizeram quando foram deslizados para dentro d’água. Você não precisava atar pesos aos corpos quando alimentava o Pântano com eles. Os cadáveres afundavam e não retornavam.

Ela hesitou na margem da lagoa. Ela nasceu para proteger seu povo, possuindo um poder de proteção que não era visto há gerações. Porém, ela falhou naquele dever esta noite e mesmo os Sussurradores não a queriam. Tudo o que restava era juntar-se aos seus pais. Deslizar sob aquelas águas tão calmas. Era o seu destino.

Não, uma voz parecia sussurrar de dentro dela. Não, não foi para isso que te criei…

Ela hesitou. Estaria ela louca agora também?

“Ei!” disse uma voz atrás dela. “Ei, o que é isso?”

Uma luz vistosa se espalhou e banhou a área ao redor do Pântano. Tacenda virou-se para encontrar um homem velho parado na porta da cabana do zelador. Ele segurava uma lanterna e possuía uma barba desalinhada, grisalha na maior parte — embora seus braços ainda fossem um pouco tonificados e sua postura era forte. Rom fora um caçador de lobisomens outrora, antes que ele tivesse vindo para os Acessos para viver no priorado.

“Senhorita Tacenda? disse ele, quase caindo sobre si mesmo em seguida, lutando para alcançá-la. “Venha aqui agora! Afaste-se daí, criança! Qual o problema? Por que você não está em Verlasen, cantando?

“Eu…” Estava atordoada em ver alguém vivo. Todos… Nem todos haviam morrido? “Eles vieram atrás de nós, Rom. Os Sussurradores…”

Ele a puxou para longe do pântano em direção à cabana. Era um lugar seguro — devido às bençãos protetoras de um sacerdote. Obviamente, essas mesmas proteções não serviram aos aldeões esta noite. Ela não sabia mais o que era seguro e o que não era.

Sacerdotes do priorado se revezavam aqui, nesta cabana, vigiando. Ultimamente, eles estavam tentando proibir as pessoas de trazer oferendas ao Pântano. Os sacerdotes não confiavam no Pântano e achavam que o povo dos Acessos precisava ser desiludido de sua antiga religião. Mas um forasteiro, mesmo um gentil como Rom, nunca poderia entender. O Pântano não era apenas a sua religião. Era a sua natureza.

“O que é isto, criança?” perguntou Rom, colocando-a em um banquinho dentro da pequena cabana do zelador. “O que aconteceu?”

“Eles se foram, Rom. Todos eles. Os geists que mataram meus pais, minha irmã… eles voltaram com força. Eles levaram todo mundo.”

“Todos?” ele perguntou. “E quanto à Irmã Gurdenvala, na igreja?”

Tacenda balançou a cabeça, sentindo-se entorpecida. “Os Sussurradores conseguiram passar pelas proteções.” Ela olhou pra ele. “O Homem da Mansão. Ele estava lá, Rom. Eu ouvi seus passos, sua respiração. Ele liderou os Sussurradores e levou todos embora, deixando nada além de olhos mortos e peles frias…”

Rom ficou em silêncio. Então, rapidamente pegou uma espada ao lado da estreita cama da cabana e a amarrou. “Preciso ir atrás da prioresa. Se o Homem da Mansão for realmente… bem, ela saberá o que fazer. Vamos.”

Ela balançou a cabeça. Sentia-se exausta. Não.

Rom puxou-a, mas ela permaneceu sentada.

“Fogos do inferno, criança,” disse ele. Ele olhou para fora pela porta, em direção ao Pântano — então estreitou os olhos. “As preces nesta cabana deverão protegê-la das piores coisas da floresta. Mas… se aqueles geists conseguiram entrar na igreja…”

“De qualquer jeito, os Sussurradores não querem a mim.”

“Fique longe do Pântano,” disse ele. “Prometa-me isso, pelo menos.”

Ela assentiu, sentindo-se dormente.

O idoso sacerdote guerreiro respirou fundo, depois acendeu uma vela antes de apanhar a sua lanterna e sair para a noite. Ele seguiria pela estrada, que o levaria para além de Verlasen. Então, veria a situação por ele mesmo.

Todos se foram. Todos.

Tacenda sentou-se, olhando o Pântano lá fora. Lentamente, começou a sentir algo novamente. Um calor subindo dentro dela. Uma fúria.

Não haveria repercussões para o Homem da Mansão. Rom poderia reclamar à prioresa o quanto quisesse, mas o Homem — o novo lorde desta região — estava além da condenação. Os sacerdotes não tinham poder real para enfrentá-lo. Eles podem gritar um pouco, mas não ousariam fazer mais por medo de serem exterminados. O povo das duas aldeias irmãs de Verlasen virariam as suas cabeças para o lado e continuariam a vida, esperando que o Homem ficasse satisfeito com aqueles que já havia matado.

Os perigos da floresta eram reais, mas os verdadeiros monstros desta terra sempre foram os lordes. Cheia de raiva, Tacenda começou a vasculhar a pequena cabana. Rom havia levado a única arma de verdade, mas ela encontrou um furador de gelo enferrujado na caixa de gelo velha. Serviria. Ela apagou a vela, depois retornou para o lado de fora, sob o luar.

O Pântano emitiu ruídos de aprovação quando ela começou a seguir a estrada que levava à mansão. O Homem, sem dúvidas, a mataria. Ele iria torturá-la, utilizaria seu cadáver em algum experimento terrível, alimentaria demônios com a sua alma.

Ela foi assim mesmo. Ela não iria atirar-se no Pântano. Esse não era o seu destino.

Ela ao menos tentaria matar o Homem da Mansão.

Continua(...)

Agradecendo muito ao pessoal da mythologica, quem está fazendo esse trabalho impressionante de tradução!!

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